«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»

Vergílio Ferreira, Aparição

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domingo, 21 de outubro de 2007

Fortunas puniendi

Incompleto. Perpetuamente incompleto. É desumano este vaticínio divino. Gélido, o vento da sorte. Arrepia-me. Faz-me tremer desalmadamente. Faltam-me as forças. O frio da noite que me envolve deita-me por terra.
Esse corpo que me dizem ser o meu jaz no chão imundo deste lamaçal. Jaz na prisão de uma insatisfação ditada por tiranos desígnios. Sem direito a julgamento. Sem justiça.
Ri-se e sorri, quando diz «tudo bem» a quem passa. Ri-se do ridículo da sua posição.
Jaz, rindo. Jaz, sentado à mesa para jantar. Jaz, sentado no comboio, quando vai para as aulas. Jaz, sentado a uma qualquer mesa de trabalho e estudo. Jaz, sentado à conversa no café. Melhor seria que jazesse no banco dos réus, para ser julgado, antes da pena. «Que pena», pensa, pois que as punições vão sendo ditadas pelo azar, qual Tribunal da Santa Fortuna em acção, que não admite a inocência. A idade da inocência já passou, essa sim, em que não havia inquisições fantasma culminando em amputações emocionais. Torturam-no até que não possa mais e, desfigurado, admita: «Sim, não presto!».
Sofre. Sofre antes de ser inquirido, sabendo o que o espera. Sofre, quando é torturado. Sofre com o castigo que lhe é aplicado por ser - humano.
Moribundo, nada lhe resta. Procura reconfortar-se no abraço inconsumado desta morte renascida.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Escrever é libertador, sabe bem. Muito bem. Mas sentir que não sou lido sabe mal. Muito mal.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Suspenso

As pressas de uma espera nunca efectuada,
Desilusão na opacidade de tempos passados,
Tempos idos em viagens ao futuro que nunca mais chega.
Oh! Nunca mais chega!

Reboliços de calmaria num passado não distante,
Num presente intocado,
Num futuro abissalmente perto,
Tão perto que desaparece.

Nunca chega, nunca chega esse futuro...
Quando chega tentam os pés prender-se ao passado,
Mas é impossível!
(Sim, quando se levanta o pé para dar o passo
Ele tem de pousar, não pode ficar suspenso no nada).

O passado já não o quer,
O presente não o aceita: ele pertence ao nada.
O futuro, esse, exerce sobre ele uma força irresistível, gravitacional.
Porém, um voador inseguro teme sempre uma má aterragem
(Especialmente quando contava com uma pista maior).

Não há forças que sustentem o pé suspenso indefinidamente:
Quando ele está no ar voltar atrás pode provocar o desequilíbrio.
Só resta seguir. Quer seguir?
Se não quisesse não teria iniciado o passo.
A terra firme do presente é uma ilusão
E a gravidade uma mentira:
Apesar do medo há sempre uma força que o impele a avançar
(Quem diria que pode ser mais assustadora a clareza da terra
[firme
Que o desconhecido do passo em frente,
Mesmo sem saber dos precipícios?).

Não há opção. (Lamenta-se).

(Eu posso voar...)

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Joana Hilário - Parabéns!

A distância afasta as pessoas, a certeza da pertença mantém-nas unidas.

Parabéns, a ti que me revisitas em sorrisos de ontem, a ti que és sorrisos de hoje, a ti que serás sorrisos nos amanhãs. Esses sorrisos dos amanhãs custam-nos a ver, porque tudo se enevoa, quais lágrimas que enchem o pára-brisas do carro em que seguimos. Lavam, essas lágrimas. Lavam e levam a sujidade, o que não presta. Hoje continuamos, os três. Não nos levam, quando nos lavam, mas eu levo-te comigo, como tu me levas contigo, como levamos a Sandra, que nos leva também. No carro em que seguimos, este é um dos poucos caminhos seguros que temos: a amizade.

domingo, 14 de outubro de 2007

Preciso de sofrer para me deixar ir. Não me digam que sofrer é mau: é necessário! (e inevitável...)

Cara metade

Cascais, 14 de Outubro de 2007

Cara cara metade,

Procuro-te, desesperadamente. Não te encontro. Sinto-me vazio. Faltas-me, como ar. Sufocas-me, como fumo espesso. É difícil ver, ver-te, saber-te, sentir-te, no meio desta fumaçada. Fumo desesperadamente esta angústia, não para me asfixiar, mas para poder olhar à volta. Fumo-te, sem saber de ti, e fazes-me mal. Matas-me lentamente, como um cancro. És um cancro! Estás dentro de mim, sem que de ti saiba. Vais-me consumindo. Alastras-te sem que consiga saber onde paras. Como parar-te? Destruir-te seria destruir-me.
Estás algures (?). Por tentativa e erro tento descobrir-te. Mais erros que tentativas, parece-me. A cada tentativa destruo partes de mim em que, afinal, ainda não havias tocado. Destruo os sítios em que não estas, projectando a doença que me corrói.
Tento que não me tentes. Tento-me enquanto te vou tentando encontrar para te tentar com esta ânsia minha de ter, de dar, de ser.
Hoje olho à volta e o (teu?) fumo que me envolve é tão negro que duvido que possas existir num lugar tão sombrio. Parece até fazer dissipar os dias de claridade em que me acho capaz de te achar em qualquer lado, pois que a meu lado caminha a beleza. Parece. Na verdade clarifica o facto de nem nem nesses dias por cá andares, ou de ser, também aí, incapaz de te ter.
Odeio-te por não te poder amar. Odeio-me por não amar. Tento amar para não odiar.
Queria que esta carta chegasse a ti, para de ti saber. Queria que (me) lesses. Não sei a tua morada, porém (nem dentro de mim, ou tentaria arrancar-te-me esse pedaço, esse mundo meu, esse eu).
Envio-te estas letras, por mar, afogando-as, por ar, perdendo-as no vento, por terra, desfazendo-as em pó.
Não sei que selo apostar: se esperança, se desespero. Faço o "um-dó-li-tá", jogando-me-te à sorte. Malvado fado. Tem-me mais que tu, o destino. Tem-te também. E permanece o mistério, aquele com que te vestes para sair de casa, aquele com que te envolves para adormecer. Adormeço sempre no mistério, para sentir o teu cheiro.
Será que o carteiro me fará chegar a ti? A incompetência reina por estas paragens. E não pára. Não pára este meu rodopio. Tonto, é como fico. Tonto, é o que sou!
Deixo-me-te na caixa do correio, qual caixa de mistérios e horrores que, de quando em quando, me desvenda mais uma leitura libertadora. Mas prende-me, essa leitura, abolicionista da realidade.

Teu, o meu desgosto. Teu, este desgostoso
Manuel Frederico Silva Bruschy Martins

sábado, 13 de outubro de 2007

Um livro: vidas.
Uma vida: páginas brancas, soltas, algumas rasgadas, rascunhos que se tornam manuscritos definitivos e uma caneta, cuja tinta falha.

M.

Dóis-me. Dóis-me mais do que me possa queixar. Dóis-me na medida que não foste, dando demais, dóis-me na medida em que fui, não me dando. Dóis.
Dóis-me na medida da tua ausência, feita abraço inconsumado. Dóis-me na medida da tua presença, feita sombra de um ontem, feita ponto distante de um amanhã.
Dóis-me no som desta música que me enche de ti. Dóis-me no correr desta lágrima, no esboçar deste sorriso.
Dóis-me neste nós feito distância. Dóis-me na medida do meu avançar pela estrada. Dóis-me neste contemplar de ti. Dóis-me, por fim, na memória de algo que está longe demais, noutro caminho.

(Escrevi-o a 25 de Setembro de 2007, pensando em nós, já tão eu e tu, então).

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Vagabundo

Na calçada estava descalço.
A luz do sol, o negro da roupa,
O céu limpo, a água que não vem,
Para lavar, para levar.

Mão estendida:
Para quem passa, para os carros.
(Para o céu?).
Gesto raro na sua vulgaridade.
Só, rodeado pela cidade.

Desenquadra-se e desenquadra:
Na sua quietude assiste ao passar do mundo,
A correr, a recuar, talvez,
Caminhando para todo o lado
E para sítio nenhum.
(Talvez para o hoje, que nos tira o ontem,
Que põe em causa o amanhã.)

Só, rejeitado.
O nós e o ele que não têm rumo.
Ou nós sem rumo e ele que não vemos.
(Que não queremos ver?).

Deixamos que ali continue,
Quando não temos nada que deixar;
Deixamo-lo ser deixado,
Deixamos que deixemos,
Mas, no fundo não deixamos os outros,
Nem os outros nos deixam a nós.
O mundo não deixa.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Outono

É Outono, mas sente-se ainda o ar quente ao anoitecer.
Atraco o meu barco neste chegar a casa. Este sítio é o mais bonito do mundo. Este momento é o mais bonito de sempre. É o momento de agora. Descanso-me, na ponta da caneta. A calma. Acalma, esta pausa. Contemplo as maravilhas deste mundo. O todo abraça-me. Todo eu sou. Estou com Deus. Agradeço-Lhe este momento de paz. Tenho muito que fazer. Tenho muito que ser. Muito para fazer, ainda. Solto o que já foi, o que já fui.
Espero, neste calor de princípios de Outono, que as folhas comecem a cair. Espero os dias de chuva em que me deixarei levar pela correria. Espero os dias gélidos em que o ar seco me beijará o rosto enquanto me deixarei beber da luz do sol de Inverno.

Sobre teclas

Ligo o pc. Teclo um pouco. A música ajuda-me a não ouvir outras coisas. Penso «Aproveitei bem a semana!». Penso «Vou aproveitar bem esta semana!». Leio uma série de coisas. Escrevo. Deixo-me correr sobre as teclas. Aproveito o momento.

Sobre rodas

«Tudo sobre rodas!», digo para mim. Deixo o quarto desarrumado e, a correr, visto-me. Paro na cozinha para enfiar qualquer coisa pela goela abaixo. Corro para o carro.
«Tudo sobre rodas!». Carrego no acelerador e vou rezando pelo caminho os típicos «Acelera!», «Sai-me da frente!», «Vira nesta, por favor!», «RRRR!!». Que gente, que não sabe andar sobre rodas, age como se tivesse cubos no carro!
Paro as rodas do carro. Demoro a pará-las. Os passeios e lugares de estacionamento estão cheios, parece que está toda a gente «sobre rodas».
Corro para apanhar o comboio. Oiço o apito, as portas a fecharem-se enquanto entro, mas consegui! De novo, «Tudo sobre rodas!». Tento respirar. As rodas chiam nos carris. Pego num livro. Leio. Travagem. Recomeço. Arranque.
Chegada. Corro pelas escadas. Outro lance. Outro. Maravilha! Cheguei às profundezas. Oiço o apito do comboio. Fico na plataforma, desta vez. Cheira a Metropolitano, quando entro de mãos dadas com a multidão. Corro para mudar de comboio. Outra vez. Estou «sempre sobre rodas!».
Subo de novo à luz do dia. Corro.
Entro na sala e peço desculpa ao professor pelo atraso. «Tudo sobre rodas!». Tento beber um café no bar, mas «já não dá tempo, Manel!» e queimo a língua.
Na aula falamos da "marcha do processo" e a última coisa que me apetece é marchar dali para fora. Até a matéria vai «sobre rodas!».

Hoje esteve «tudo sobre rodas!». Chego a casa e paro o carro.

sábado, 6 de outubro de 2007

Um balde e uma pá

Um balde e uma pá, à beira-mar. Enquanto construía os meus castelos descurava serem, de facto, só de areia. A inocência do olhar para as ondas a bater nas rochas e o chapinhar nas poças. O sol punha-se. Um dia. Depois mais. Um ano. Depois mais. Uma década.
Agora, mais dias, anos, e, tão perto, décadas, revisito as ondas a bater nas rochas. O sol continua a pôr-se. Renasço com esta cíclica morte. Espanto-me ao pensar «ainda sou eu!». A ver o sol deixar este canto do mundo reaprendo a esperar o seu renascer. «Ainda sou eu!». Sou mais eu. Este pôr-do-sol traz-me de volta os restantes e anuncia-me os que estão por chegar.
Uma caneta e um papel, à beira-mar. Enquanto destruo os meus castelos de areia construo em mim novos traços. A beleza do olhar o mundo e a arte de viver. O sol pôs-se. Um dia. Amanhã mais.

Maresia

Sente-se no ar. Sente-se como a indiferença que corre os passeios, como a calma que corre os bancos da Igreja, como a paixão que corre entre portas, como a dor que corre entre sorrisos, como a alegria que corre os escorregas.
Sinto-lhe a agitação, a revolta, a paixão, a dor, a alegria, a calma. Sinto. Sinto-lhe a paz. Sinto-me em paz.

Brisa do Ocidente

Não consigo estar. Tenho de ser primeiro. Saio de mim. Estou.
Estou frente ao mar. Consome-me como o fogo a crepitar na lareira, mas deixo-me afogar.
Dissolvo-me na suavidade do encontro do mar com a terra. No seu encontro comigo. No meu encontro.
Encontro o eterno guerreiro. Fumamos juntos o cachimbo da paz. Bebemos juntos o sangue das batalhas e deixamo-nos estar nesta embriaguez.
Estou ébrio. De mim. Deste cheiro a maresia. O sal da terra deve provir todo deste mar. Encontro-me com ele.
O sol que me beija a pele adocica este cheiro. Mas está baixo. (É Outono.) Sim, está baixo. Pôr-se-á. A espera não é tão grande e a rapidez do girar do mundo intensifica esta embriaguez.
«Lá vêm as nuvens!», penso. Observo-as. As nuvens produzem espectáculos maravilhosos quando se tornam densas. Hoje dissipam-se. Lentamente.
Nada perde o seu ritmo. Mas quando somos de tudo, ou não somos nada, não há ritmos, só vaguear. Gosto de ser um vagante, traz-me de volta a esta praia. Diriam que não tenho alternativa a vaguear. Não tenho, de facto. Ninguém tem. Somos como brisas. Porquê lutar contra isso? Sempre que o bom Bóreas nos empurra para baixo há novas brisas a sentir, novos cheiros que pairam no ar, novos sabores que se nos entranham na boca, na garganta e nos provocam uma gloriosa náusea. Um espasmo e foi-se. Saiu de nós esse sabor amargo. (O mundo não está ao contrário quando estamos a sul das nossas batalhas. A estrela polar é mais uma, entre tantas, e não perderá o seu lugar no espaço interestelar.)
O calmo Zéfiro vem e leva-me com ele. Arrasta-me. Sou uma brisa. Não quero escolher o meu rumo. Lutar contra o vento deixar-me-á aqui, só. Voltarei, como a maré. Deixo-me ir.
Agora sou. Ainda não consigo estar. O vento também não está, passa. Mas leva consigo os cheiros. Vou levar-me até mim, pelo mundo. Parte de mim estará sempre nesta praia. Tem o meu cheiro.
Há que deixar-me por aí. Despedaço-me e sou levado. É bom ser do mundo e não ser meu, não ser teu. Sou de todos.
Vou. Sendo.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Grito

As paredes cercam-me. O espaço aberto da cidade aperta-me contra o meu próprio corpo, isolado de todos. Eles passam. Isso: passam.
Grito: preciso de ar! Ninguém me ouve. «Abandonam-me!»
Gritei, para todos, para ninguém. Abafei o meu grito interior para poder escutar, para poder falar.
Ouvi, um dia: «Faz-te homem!». E faço-me, todos os dias.