«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»

Vergílio Ferreira, Aparição

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sábado, 6 de outubro de 2007

Brisa do Ocidente

Não consigo estar. Tenho de ser primeiro. Saio de mim. Estou.
Estou frente ao mar. Consome-me como o fogo a crepitar na lareira, mas deixo-me afogar.
Dissolvo-me na suavidade do encontro do mar com a terra. No seu encontro comigo. No meu encontro.
Encontro o eterno guerreiro. Fumamos juntos o cachimbo da paz. Bebemos juntos o sangue das batalhas e deixamo-nos estar nesta embriaguez.
Estou ébrio. De mim. Deste cheiro a maresia. O sal da terra deve provir todo deste mar. Encontro-me com ele.
O sol que me beija a pele adocica este cheiro. Mas está baixo. (É Outono.) Sim, está baixo. Pôr-se-á. A espera não é tão grande e a rapidez do girar do mundo intensifica esta embriaguez.
«Lá vêm as nuvens!», penso. Observo-as. As nuvens produzem espectáculos maravilhosos quando se tornam densas. Hoje dissipam-se. Lentamente.
Nada perde o seu ritmo. Mas quando somos de tudo, ou não somos nada, não há ritmos, só vaguear. Gosto de ser um vagante, traz-me de volta a esta praia. Diriam que não tenho alternativa a vaguear. Não tenho, de facto. Ninguém tem. Somos como brisas. Porquê lutar contra isso? Sempre que o bom Bóreas nos empurra para baixo há novas brisas a sentir, novos cheiros que pairam no ar, novos sabores que se nos entranham na boca, na garganta e nos provocam uma gloriosa náusea. Um espasmo e foi-se. Saiu de nós esse sabor amargo. (O mundo não está ao contrário quando estamos a sul das nossas batalhas. A estrela polar é mais uma, entre tantas, e não perderá o seu lugar no espaço interestelar.)
O calmo Zéfiro vem e leva-me com ele. Arrasta-me. Sou uma brisa. Não quero escolher o meu rumo. Lutar contra o vento deixar-me-á aqui, só. Voltarei, como a maré. Deixo-me ir.
Agora sou. Ainda não consigo estar. O vento também não está, passa. Mas leva consigo os cheiros. Vou levar-me até mim, pelo mundo. Parte de mim estará sempre nesta praia. Tem o meu cheiro.
Há que deixar-me por aí. Despedaço-me e sou levado. É bom ser do mundo e não ser meu, não ser teu. Sou de todos.
Vou. Sendo.

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