«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»

Vergílio Ferreira, Aparição

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domingo, 14 de outubro de 2007

Cara metade

Cascais, 14 de Outubro de 2007

Cara cara metade,

Procuro-te, desesperadamente. Não te encontro. Sinto-me vazio. Faltas-me, como ar. Sufocas-me, como fumo espesso. É difícil ver, ver-te, saber-te, sentir-te, no meio desta fumaçada. Fumo desesperadamente esta angústia, não para me asfixiar, mas para poder olhar à volta. Fumo-te, sem saber de ti, e fazes-me mal. Matas-me lentamente, como um cancro. És um cancro! Estás dentro de mim, sem que de ti saiba. Vais-me consumindo. Alastras-te sem que consiga saber onde paras. Como parar-te? Destruir-te seria destruir-me.
Estás algures (?). Por tentativa e erro tento descobrir-te. Mais erros que tentativas, parece-me. A cada tentativa destruo partes de mim em que, afinal, ainda não havias tocado. Destruo os sítios em que não estas, projectando a doença que me corrói.
Tento que não me tentes. Tento-me enquanto te vou tentando encontrar para te tentar com esta ânsia minha de ter, de dar, de ser.
Hoje olho à volta e o (teu?) fumo que me envolve é tão negro que duvido que possas existir num lugar tão sombrio. Parece até fazer dissipar os dias de claridade em que me acho capaz de te achar em qualquer lado, pois que a meu lado caminha a beleza. Parece. Na verdade clarifica o facto de nem nem nesses dias por cá andares, ou de ser, também aí, incapaz de te ter.
Odeio-te por não te poder amar. Odeio-me por não amar. Tento amar para não odiar.
Queria que esta carta chegasse a ti, para de ti saber. Queria que (me) lesses. Não sei a tua morada, porém (nem dentro de mim, ou tentaria arrancar-te-me esse pedaço, esse mundo meu, esse eu).
Envio-te estas letras, por mar, afogando-as, por ar, perdendo-as no vento, por terra, desfazendo-as em pó.
Não sei que selo apostar: se esperança, se desespero. Faço o "um-dó-li-tá", jogando-me-te à sorte. Malvado fado. Tem-me mais que tu, o destino. Tem-te também. E permanece o mistério, aquele com que te vestes para sair de casa, aquele com que te envolves para adormecer. Adormeço sempre no mistério, para sentir o teu cheiro.
Será que o carteiro me fará chegar a ti? A incompetência reina por estas paragens. E não pára. Não pára este meu rodopio. Tonto, é como fico. Tonto, é o que sou!
Deixo-me-te na caixa do correio, qual caixa de mistérios e horrores que, de quando em quando, me desvenda mais uma leitura libertadora. Mas prende-me, essa leitura, abolicionista da realidade.

Teu, o meu desgosto. Teu, este desgostoso
Manuel Frederico Silva Bruschy Martins

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