«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»

Vergílio Ferreira, Aparição

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quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Vagabundo

Na calçada estava descalço.
A luz do sol, o negro da roupa,
O céu limpo, a água que não vem,
Para lavar, para levar.

Mão estendida:
Para quem passa, para os carros.
(Para o céu?).
Gesto raro na sua vulgaridade.
Só, rodeado pela cidade.

Desenquadra-se e desenquadra:
Na sua quietude assiste ao passar do mundo,
A correr, a recuar, talvez,
Caminhando para todo o lado
E para sítio nenhum.
(Talvez para o hoje, que nos tira o ontem,
Que põe em causa o amanhã.)

Só, rejeitado.
O nós e o ele que não têm rumo.
Ou nós sem rumo e ele que não vemos.
(Que não queremos ver?).

Deixamos que ali continue,
Quando não temos nada que deixar;
Deixamo-lo ser deixado,
Deixamos que deixemos,
Mas, no fundo não deixamos os outros,
Nem os outros nos deixam a nós.
O mundo não deixa.

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