«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»

Vergílio Ferreira, Aparição

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quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Lugares da minha infância

O meu lugar de clausura de eleição: Biblioteca Municipal de Cascais - Casa da Horta. O tormento que a sorte me elegeu: Direito Comercial. Cansaço ao meio-dia, ainda não a meio dia de estudo. Decido-me por uma pausa antes de almoço, para passear e arejar a cabeça. No encontro com a fome impõe-se a pausa para o almoço. No pós-almoço digiro as pausas anteriores, neste momento de escrita. A vida, a minha vida, faz-se de pausas. Vivo mais, sou mais, nessas, nestas pausas, quer-me parecer. Os outros momentos são os derradeiros intervalos de que não escapo.
Vagueio, ainda, por lá, pela infância. O contacto com a criança que já não sou faz-se pelas memórias, mas é mais real quando algo físico interpenetra este reviver. Deixo os livros e saio a porta. Subo pelas pequenas ruas da velha vila e descubro a saudade, mais esquecida que os lugares. Não há nada de especial na maior parte dos lugares em que passo que não a saudade perdida nas pressas. São pequenas, as ruas, apertadas. Eu era pequeno, também. Hoje descubro que a vida feita nas ruas e avenidas principais não tem o mesmo encanto. A pequenez dos espaços, que traz a estranha sensação de conforto, não tem o assombro da Av. da Liberdade, mas tem a bondade do Largo da Misericórdia. Tenho mais horizontes, mais lugares onde estar, mas falta-me a protecção do aperto maternal e a segurança da brincadeira com o pai, ao Domingo à tarde. Continuam presentes, os meus pais, protectores, amando-me, mas o Manuel já não é o miúdo de outrora, e agora É, em si mesmo... sim, dá-se aos outros e recebe (d)os outros, mas no pasmo da descoberta do ser há muito de assustador. Na independência ainda estou (in)dependência e pelas minhas viagens ainda vou caindo, esfolando os joelhos, mas já não peço por auxílio. Sou forte, «sou grande!». Não é ironia, isto que digo. Sou forte porque me enfrento, e ao Mundo, sabendo-me Eu, amando-me Eu, amando ser Eu. Mas eu canso-me. E eu sei que a cura dos meus desassossegos está em mim. E eu procuro a cura dos meus desassossegos na minha alegria e na minha dor e no que o(e os) que me rodeia(m) é(e são) em mim, bem como em tudo o que sou no(e nos) que me rodeia(m).
Eu sei. Sei porque, vagueando por aí, o procuro. Porque o encontro quando paro.
Caminho. Este é o caminho do dia de hoje, não o de um dia da minha infância, mas há entrecruzamentos. Subo até à Igreja dos Navegantes, sempre fechada, desde que me lembro. Lá dentro há-de estar o Deus que muitos enclausuraram com o desuso do edifício, mas o meu está cá fora; melhor: está em todo o lado. A falta de uma oração mais prolongada leva-me até à Igreja da Freguesia. Fechada, também. Sinais dos tempos: nem a casa de Deus está imune às pilhagens. Sigo. Passando pela Casa Sommer, volto a entrar no Parque da Gandarinha (ainda cá estava, à espera que o revisitasse). Para trás fica a minha antiga creche, a "Zé Luís", como para trás estão os tempos em que por lá brincava (brincava... a doçura desta palavra, tenho-a como algo estranho, distante, como o Sol que nos surpreende com o seu calor a cada manhã). Passeio pelo Parque: ia lá quase todos os dias, com os outros meninos e meninas da creche (por onde andarão?). O lago, os patos, os pavões, o cheiro da relva, as pedras gastas pelo passar das pessoas, que as marcam mais que o tempo, o Museu Condes Castro Guimarães e o mar, com a marina, ao fundo, tudo sorvido a passo de passeio, em longos bafos, longas inspirações, longas expirações, longas expiações. Expio os males que me sucumbem com o passar das horas e passo, minutos depois, o portão, para a rua. Desço a Av. D. Carlos I, olho a Cidadela, olho a Baía, o Estoril, ao longe, o Estoril-Sol em entulho cósmico, pronto a ser uma supernova área de apartamentos de luxo. Que luxo poder aqui estar! e invade-me a felicidade desta pausa por que ansiava, não desde que comecei o estudo, mas desde que nasci (ou antes-?), como todas as pausas futuras que ainda, já, anseio. Seguindo para casa da minha tia-avó, verdadeira avó materna, passo pela Docapesca. Cheira a peixe e sinto-me grato por da Praia dos Pescadores ainda partirem, hoje, barcos para a faina. Restam-me uns poucos metros de contacto com o passado, de vivência do presente. A minha tia espera-me à porta. Um beijo. O almoço.
Agora há um intervalo que vou preencher com a enfastiante leitura do desassossego doutrinal. (Não!!) Há Direito (!), eu que o estude. Por ora, que pare a pena e a criança que vá brincar para o jardim, que há trabalho a fazer.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Contra o encerramento do D. Estefânia

Caríssimos,

Vão a http://www.petitiononline.com/hde2007 e lutem contra o encerramento do Hospital D. Estefânia. Não custa assinar a petição, nem passar a palavra.
«Não é por mim, é por elas» (pelas crianças).

Não resisto a transcrever o e-mail de uma amiga através do qual soube da petição:

«Olá,
É claro que isto está no seguimento lógico das últimas conquistas do progresso em Portugal, se os podemos matar, para quê tratá-los? Depois fazem-se novos que aí é que está o gozo, até porque crianças doentes dão muito trabalho, despesa e problemas e os adultos têm que poder fazer o que quiserem com a sua vida. Mas já sabem o que eu penso desta lógica, por isso venho juntar mais uma pedrada nesta intifada (onde privados de outras armas como a justiça ou a responsabilidade, nos vemos constantemente reduzidos às pedradas da indignação e da reclamação) contra quem quer atacar os mais pequenos e os mais fracos em vez de, como é obrigação dos mais fortes, os defender. E passo para ti a escolha de atirar ou não esta pedra.
Bjs. Luisa
PS. desculpem o tom amargo mas há coisas que me ultrapassam largamente.»

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

o meu dia

De manhã: respiro a paisagem antes de entrar no comboio.
De tarde: monto o meu cavalo de batalha. Não evito a queda. Nódoas negras.
À noite: café com amigos que há que recuperar desta semana (e das outras que ficaram para trás; e das outras que tenho pela frente; e daquelas em que não era vivo, mas que ainda me pesam como uma herança jacente a uma família desagregada; e daquelas em que já estarei morto porque o peso da minha ausência, ou a ausência desse peso, no esquecimento, têm um travo amargo).
De madrugada: Dormir e não sonhar (por favor!!, às tantas acho que já não aguento, que estou a entrar em overload).

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Agoriosamente, nesta ágora

Não se vêem mercadores, políticos ou homens de negócios nesta ágora (uma das que hoje se encontram em Cascaes: estão dispersas pela vila, como as gentes). Pergunto-me se se trata de um fenómeno de agorafobia colectivo, mas cedo percebo que é a chuva, que me molha o rosto e o banco em que me sento, que afasta as pessoas. Tento respirar o momento no meio desta chuva miúda. Custa respirar o momento nesta teia de tempos em que me procuro encontrar. Não sofro de agórofobia, mas custa-me encontrar um espaço, um segundo que seja, para mim, agora. Agora há muita coisa que tenho para fazer. Agora, agora que tento, por segundos, não ficar em segundo no confronto do ser com o fazer.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

- O que é que fizeste de especial hoje?
- Nada. Foi um dia banal... e soube-me bem.
- Mas tu costumas fugir da banalidade!
- Hoje não fugi, por isso foi extraordinário.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Anoiteceu

Anoiteceu. O céu escuro abate-se sobre mim. Dele irradia uma luz quase imperceptível. Não provoca queimaduras, cancro de pele ou dores de cabeça, como o Sol. Também não aquece. Não é a luz fria dos candeeiros de rua, aqueles que iluminam as "mulheres da vida", os "sem-abrigo" abrigados em jornais e cartão, ou de que se escondem os bandidos, os amantes secretos ou as almas desgostosas que sninfam do pó a que querem regressar, esse que os leva ao início dos tempos, que é tempo nenhum. A luz do céu nocturno é morna. Amornece. Aquece desesperos findados (ou antes interrompidos, esses quotidianos assassinos que quotidianamente chegam ao fim "por volta das 20h00"), arrefece as tensões quentes da pressão de um céu com demasiada claridade para esconderijos, arrefece os sorrisos do atendedor de balcão, da velhota que passeia o cão moribundo no jardim, da dona de casa que toma chá e vai buscar os miúdos ao colégio, do mendigo que maldiz os que lhe dão esmola ao virar costas, porque é injusto que, tendo, lhe dêem tão pouco.
Morno. Baloiço neste ir e não ir. Fico. Mas baloiço. É por isso que às vezes fico zonzo, tenho náuseas. Baloiço. Se não for a parte alguma, pelo menos vou-me mexendo, vou tomando balanço para dar o próximo salto (e não escondo o medo de cair).

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Meias-noites

É meia-noite, hora da morte do dia,
O corpo repousa, na cama meia quente,
Falta o sono, dói a colcha, meia fria,
Espero o adormecer (Morfeu vem de repente!).

«Por quem me tomas, Desatino?».
Desvario de eras, aqui, no quarto.
«Não me tomes, não é destino!»,
«Não o queres, diz antes». Parto.

Lá fora, as estrelas brilham,
A lua canta, em sonolência.
Cá dentro, os pés frios tremelicam,
As ideias desvanecem-se, feitas dormência.

Durmo, cabeça sobre o travesseiro,
Um ombro sobre o colchão, outro solto,
Carregando, ainda, o peso do mundo inteiro,
Mas agora durmo, sem sonhos (logo volto).