«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»

Vergílio Ferreira, Aparição

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quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Anoiteceu

Anoiteceu. O céu escuro abate-se sobre mim. Dele irradia uma luz quase imperceptível. Não provoca queimaduras, cancro de pele ou dores de cabeça, como o Sol. Também não aquece. Não é a luz fria dos candeeiros de rua, aqueles que iluminam as "mulheres da vida", os "sem-abrigo" abrigados em jornais e cartão, ou de que se escondem os bandidos, os amantes secretos ou as almas desgostosas que sninfam do pó a que querem regressar, esse que os leva ao início dos tempos, que é tempo nenhum. A luz do céu nocturno é morna. Amornece. Aquece desesperos findados (ou antes interrompidos, esses quotidianos assassinos que quotidianamente chegam ao fim "por volta das 20h00"), arrefece as tensões quentes da pressão de um céu com demasiada claridade para esconderijos, arrefece os sorrisos do atendedor de balcão, da velhota que passeia o cão moribundo no jardim, da dona de casa que toma chá e vai buscar os miúdos ao colégio, do mendigo que maldiz os que lhe dão esmola ao virar costas, porque é injusto que, tendo, lhe dêem tão pouco.
Morno. Baloiço neste ir e não ir. Fico. Mas baloiço. É por isso que às vezes fico zonzo, tenho náuseas. Baloiço. Se não for a parte alguma, pelo menos vou-me mexendo, vou tomando balanço para dar o próximo salto (e não escondo o medo de cair).

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