«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»

Vergílio Ferreira, Aparição

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segunda-feira, 3 de março de 2008

Encontros em mim

Hoje há um verdadeiro sorriso em mim, que não consigo esconder de mim próprio. Não o revelo ao Mundo porque é meu. Não, não é mais um rasgar da alma num rasgar de lábios. É uma intimidade feliz em que me deixo estar, grato por ser. Estou em constantes guerras pensativas e hoje, como sempre, elas permanecem porque penso e porque sou, em consequência. Mas hoje as guerras corporizadas em estímulos cerebrais não têm a força dilacerante do passar apressado dos dias. Há paz neste espaço imóvel e inconstante onde me encontro. É uma paz activa, que se vai desenvolvendo ao ritmo construtivo dos apelos e respostas de mim a mim próprio. Há um grito de dor que ecoa ao longe e uma mão, talvez minha, que se estende a essa voz disforme que pertence à morte dos ontens e ao chamar mortífero dos amanhãs. Escuto esse grito. Oiço um pingar vaporizado. Liquefaço o medo para que corra sem bloqueios pelas minhas veias. Condenso a gratidão de estar vivo, de ser. Entrego-me às vontades do Mundo crendo que, não um dia, mas que em cada dia, farei de mim um instrumento de mudança e construção. É uma vontade divina que apreendo e minha torno, que se corporiza pelo meu agir.

3 comentários:

Amândio Sereno disse...

E se outra coisa não restasse, sempre nos restará a gratidão de estarmos vivos e todos os dias tentarmos mudar e construir um ser melhor.

Excelente texto.

Maria do Sol disse...

Os sorrisos da alma não provocam rugas... são bálsamo e cura, milagrosos para os defeitos dos dias.
Estar grato por essa capacidade de sentir serenidade, ajuda de facto a mudar o mundo.... nem que seja o nosso mundo quotidiano.
Gosto da tua escrita.

Ana Rita Duarte de Campos disse...

Caro Manuel,

Que bom, quando o pensar nos traz o aplacar da dor e um sorriso nos paira no espírito. Que bom é darmos por nós assim, resistindo à tentação das viagens em vai-vem entre o nosso cérebro e o nosso umbigo. Porque a escrita também se faz quando estamos felizes, viva este belo bocado de prosa que tanto gostei de ler.

Fique bem.