«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»

Vergílio Ferreira, Aparição

.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Nada de muito (ou muito de nada?)

Nada por ora,
Nada agora,
Nada me aflora.

Muito poder,
Nada querer,
Nada fazer.

Muito pedir,
Muito por vir,
Nada para rir.

Muito esperar,
Muito rezar,
Muito a faltar.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Vida aos soluços

tic-tac, tic-tac
eu
tic-tac, tic-tac
aqui
tic-tac, tic-tac
.
tic-tac, tic-tac
presença inconstante
tic-tac, tic-tac
de mim
tic-tac, tic-tac
ainda e sempre
tic-tac, tic-tac
buscando a minha constância
tic-tac, tic-tac
.
tic-tac, tic-tac
ding-dong seis vezes
tic-tac, tic-tac
digamos, é
tic-tac, tic-tac
meio-dia
tic-tac, tic-tac
mais dois minutos, vá
tic-tac, tic-tac
e mais um minuto, já
tic-tac, tic-tac
.
tic-tac, tic-tac
ahhh
tic-tac, tic-tac
!
tic-tac, tic-tac
ahhhahhh
tic-tac, tic-tac
!
tic-tac, tic-tac
[ ]
tic-tac, tic-tac
soluço
tic-tac, tic-tac
no tempo
tic-tac, tic-tac
.
tic-tac, tic-tac
é como vou vivendo:
tic-tac, tic-tac
aos soluços
tic-tac, tic-tac
porque não consigo
tic-tac, tic-tac
ter tempo para me achar
tic-tac, tic-tac
sorrir
tic-tac, tic-tac
descansar
tic-tac, tic-tac
chorar
tic-tac, tic-tac
.
tic-tac, tic-tac
de tanto me perder
tic-tac, tic-tac
o mundo perde também
tic-tac, tic-tac
o seu sentido
tic-tac, tic-tac
e parece
tic-tac, tic-tac
de pernas para o ar
tic-tac, tic-tac
.
tic-tac, tic-tac
STOP !
E o barulho ensurdecedor do tempo não cessante, o que me falta, faz-me doer os pés.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Encontros em mim

Hoje há um verdadeiro sorriso em mim, que não consigo esconder de mim próprio. Não o revelo ao Mundo porque é meu. Não, não é mais um rasgar da alma num rasgar de lábios. É uma intimidade feliz em que me deixo estar, grato por ser. Estou em constantes guerras pensativas e hoje, como sempre, elas permanecem porque penso e porque sou, em consequência. Mas hoje as guerras corporizadas em estímulos cerebrais não têm a força dilacerante do passar apressado dos dias. Há paz neste espaço imóvel e inconstante onde me encontro. É uma paz activa, que se vai desenvolvendo ao ritmo construtivo dos apelos e respostas de mim a mim próprio. Há um grito de dor que ecoa ao longe e uma mão, talvez minha, que se estende a essa voz disforme que pertence à morte dos ontens e ao chamar mortífero dos amanhãs. Escuto esse grito. Oiço um pingar vaporizado. Liquefaço o medo para que corra sem bloqueios pelas minhas veias. Condenso a gratidão de estar vivo, de ser. Entrego-me às vontades do Mundo crendo que, não um dia, mas que em cada dia, farei de mim um instrumento de mudança e construção. É uma vontade divina que apreendo e minha torno, que se corporiza pelo meu agir.