«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»
«Mas estou em transe; naquele instante quero partir e convenço-me de que o instante é passageiro e falo ao telefone e sustenho a respiração e com ela o sofrimento, o sofrimento de te não ter que é ainda não me ter. Ganhei a batalha da esperança. Digo não à escuridão, mas fujo do cenário. Mãe.» Isabel Moreira, Quando uma palavra não basta
«A mancha da lua fosforesce como o vapor de uma lenda. Um bafo quente sobe dessa água, sagra-me de silêncio como um dedo na fronte. E outra vez agora me deslumbra, em alarme, a presença iluminada de mim a mim próprio, o eco longínquo das vozes que me trespassam. Como é difícil, miraculoso, pensá-lo. Quanta coisa aprendi e sei está aí à minha disposição quando dela preciso. Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência, me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o mundo, de que há uma força que me vem de dentro, me implanta na vida necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio que me não deixa ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus olhos e esse meu pensamento, esta verdade que me queima quando vejo o absurdo da morte, se pretendo segurá-la em minhas mão, revê-la nas horas do esquecimento, foge-me como fumo, deixa-me embrutecido, raivoso de surpresa e de ridículo… E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo – da alegria, do heroísmo, da amargura, de cada gesto. Ah, ter a evidência ácida do milagre que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de mim que a sei – não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala, são uma realidade, existem, mas é através de mim que se instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo. Como é possível? Conheço-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio de invenções, descobertas, que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa bela e inverosímil. E este mundo complexo, amealhado com suor, com o sangue que me aquece, um dia, um dia, – eu o sei até à vertigem – será o nada absoluto, dos astros mortos, do silêncio. Mas tudo isto é quase falso, é quase estúpido só de estar a pensá-lo, a dizê-lo, porque a sua evidência é um milagre instantâneo.» Vergílio Ferreira, Aparição
«Léon estava cansado de amar sem resultado; além disso começava a sentir aquele abatimento que é provocado pela constante repetição da mesma vida, quando nenhum interesse a dirige e nenhuma esperança a sustém. Sentia-se tão enojado de Yonville e dos seus habitantes, que a vista de certas pessoas ou de certas casas o irritava até ao ponto de não a poder suportar; e o farmacêutico, apesar da boa pessoa que era, tornava-se-lhe também insoportável. Contudo, a perspectiva de uma situação nova assustava-o tanto quanto o seduzia.» Gustave Flaubert, Madame Bovary (ênfase minha). Eis o drama diário do homem médio.