«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»

Vergílio Ferreira, Aparição

.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Ei-los

Em passo apressado
Há um desesperado
Que se sente cansado.
Não, não é enfado,
Está martirizado, chagado.

No meio do correrio
Há uma mulher ao frio
Com ar pouco sadio.
Ao olhar, um arrepio,
Um protesto, que silencio.

Em grande pasmaceira
Há um pobre da asneira
Que, com grande bebedeira,
Sonha com o calor da lareira
Enquanto jaz no passeio, à beira.

No meio de um bar
Há um tipo dançar,
Que se sente a viajar,
Não porque vá mudar, melhorar,
Mas pelo que acabou de tomar, ou sninfar.

Em velocidade alucinante
Há um doido ao volante
Que guia, errante,
Frente ao destino, avante!,
Sem tempo, o viajante.

No meio do oratório
Há um sehor, de ar finório,
Que muito dá no oferetório,
Mas que quer, do Senhor, não falatório,
Antes respotas, em reportório.

Em escrita, como terapia,
Há um rapaz que, com energia,
Muito vai expondo, de forma algo fria,
Mas cuja mente, um pouco doentia,
Procura, loucamente, o calor da magia.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Visão Nocturna

É de noite que tenta achar os trilhos que a ofuscante luz do dia escondeu na penumbra. De noite: não aquela que vai desde o pôr ao nascer do sol, mas a que vai da cegueira da consciência da busca à clarividência da perturbação do desencontro com a calma. Tenta acalmar-se de todas as maneiras: pelos prazeres, pelas ausências de sentidos, pelas negações de sentimentos, pelas dores, pelos chamamentos surdos, pelas surdinas de discussões teoréticas inacabadas nas constatações que já foram de Sócrates ou Popper da incaceitabilidade de uma verdade pela Verdade. Verdade: tenta! Remexe-se em braçadas triunfais para respirar por entre areias movediças e enterra-se. Pára. Respira areia. Cospe. Arranha. Sossega os movimentos e os pensamentos na esperança de ar puro. Salva-se pela martirização da lembrança de uma longa inspiração de um ar que nunca sentiu. Nada é puro. Contamina as ideias que tentam fugir de si mesmas e procura encontrar uma saída. Não pode abrir os olhos: vai doer. Mas dói sempre, até o ar é venenoso. «Pensa!». Ganha forças sabe Deus onde, desconfiando ele que é na memória do ar fresco. Está quente: é o reboliço. Quieta-se. Arrefece a insónia. Desfaz-se da areia que o rodeia. Respira um pouco. Tosse. Concentra-se no som da sua tosse e doem-lhe os brônquios. E sente. E tosse. E rasga os sonhos inspirando. E inspira medos rasgando. E expira, incontrolado, sufocando a constância do veneno gasoso que é a sua presença algures. Explode-lhe uma veia, algures, e inunda-se do sangue que dilui a sua ausência. Toca-se e sabe-se desfeito. Abre os olhos para contemplar as chamas frias que lhe envolvem o corpo. Não é isso que vê. Desaparece a consciência de si e está escuro, muito escuro. As pupilas dilatam enquanto a cadência da respiração decresce. Finalmente consegue ver. Já não se mexe. Já não pensa. Não respira o tal ar puro, consumindo, inconscientemente, o único ar que conhece. Vê tanta coisa... mas nada lhe flui para o cérebro da consciência, porque as ideias se perderam. Quando acordar de nada se lembrará e um pássaro cantará as alegrias da manhã antes de um tiro o calar e fazer chegar aos ouvidos do noctívago a alvorada.
Está desperto e olha o massacre da noite da ruína. Quando começa a pensar sente a dor dos mecanismos enferrujados que roçam uns nos outros e sabe-se aí, nesse espaço que se estende até onde a vista alcança. Mas só até aí, nada mais pode ver.