«o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.»

Vergílio Ferreira, Aparição

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terça-feira, 16 de outubro de 2012

Carneirada

Ando em rebanho. Não é menosprezar-me, o dizer isto, porque todos andamos. Na verdade, só não o fazem os muito corajosos ou os muito perdidos, em ambos os casos tendencialmente loucos ou descompensados. Não me aflige seguir o rebanho, seguir o som do badalo ou andar em grupo. Aflige-me, isso sim, o ter noção de que em algum momento me fui perdendo ao ir caminhando par a par com certos núcleos do rebanho, sem ter rumo.

Perdi-me. Quer dizer, sei onde estou, estou com outras ovelhas, mais escuras ou mais claras, mais carecas ou mais peludas, mais magras ou mais fartas. Mas estou por aí, vou andando, sem por vezes me lembrar sequer de onde venho, onde estou ou para onde vou.

À deriva... Dir-me-ão, por ventura, que há surpreendentes descobertas na deriva, mas toda a ovelha sabe que tal prática continuada a levará a tresmalhar-se, mais tarde ou mais cedo.

Preciso de saber quem sou, de onde venho e para onde quero ir. Preciso de ser capaz de distinguir o meu bramido dos dos demais.

Quer-me parecer, até, que este rebanho está a colocar-se em risco. Falta uma orientação, um Pastor. Porque tudo vagueia e tudo pasta tanto quanto se pode, mas o campo está já seco e em breve morreremos de fome se mais pastagens não alcançarmos. Precisamos de ser guiados, há que ter humildade e discernimento. O Inverno aproxima-se e há que recolher à guarida do curral.

A ovelha não terá mais fortuna por se tresmalhar no seu egocentrismo, mas não pode, tão pouco, refugiar-se na pseudo segurança de um rebanho perdido, dissolvida que está nessa anulação comunitária.

Isto que tenho dito, vou-o percebendo de tempos a tempos. Mas perco-me sempre desses desígnios na ocupação do pasto de curta dura, destinado que fico a consumir a erva que vejo por entre as patas para não desperdiçar o tempo.

Quero o consolo da mãe, mas cresci já e não poderei contar com a resposta certa aos meus bramidos de auxílio. Tenho de rumar com um sentido, é hora faz já muito tempo.

Por ora repouso sobre a cama de espinhos que se queda debaixo de mim. Mas na agonia deste desconforto confio que a provação não pode existir senão para determinar o espírito para seguir caminho.

Cheiro augúrios de verdura, ao longe. Oxalá não me deixe perder o rasto à meta no entretanto.